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Minha mãe, a primeira feminista

Cada vez que dou voltas a minha consciência feminista, paro no “quando”. Quando comecei a perceber que algo estava errado? Quando senti que, por ser mulher, eu levava inscrita uma carga de sutis sistemas de opressão e estava condicionada a perpetuar umas certas relações de hierarquia e de poder? Ainda havendo recebido uma educação bastante progressista, em muitos aspectos, há mecanismos de anulação do nosso potencial, como mulher, que nem nos damos conta. E quando foi que comecei, em maior ou menor medida, a questionar tudo isso?

É certo que a universidade foi o passo crucial. Relacionar-me com pessoas do movimento estudantil, de consciência política muito ativa, foi o momento em que comecei a ter corpo teórico para nomear tudo o que eu sentia. Mas, antes disso, houve as minhas incursões pelos terrenos das religiões neo-pagãs, cultos às divindades femininas, leituras sobre a inquisição e a sabedoria ancestral de tantas mulheres. Foram uns quantos anos de desconstrução da identidade religiosa que vinha de fábrica na minha família, começando um processo de perguntas mais etéreas, existencialistas e de rechaço de tanta mitologia cristã, com a qual não me identificava.

Porém, ainda houve um antes. Ao longo da minha curta existência, fui acompanhada e educada por uma mulher que tentou, de todas as formas que pôde, dar-me o espaço e as ferramentas necessárias para que eu vencesse a inércia social e me construisse e reconstruisse sempre que quisesse e, o mais importante, com a garantia do seu apoio. Nunca incondicional, é certo. As críticas sempre estiveram presentes e, hoje sei, que retirar o apoio é também uma forma de educar na independência – retirar aquela terceira perna, como diria Clarisse Lispector.

Essa mulher, minha Mãe, Maria Lúcia de Araújo, foi quem primeiro plantou as sementes para as minhas futuras inquietudes quanto à situação das mulheres no mundo. Foi ela quem fez com que eu percebesse que eu podia ser firme e decidida, o que hoje eu chamaria de processo de empoderamento. Foi ela quem disse que eu podia viver a minha sexualidade de forma livre, sem medo ao que as pessoas do meu entorno fossem pensar. Foi ela quem, nunca (e afirmo rotundamente, porque realmente é um “nunca”), sugeriu que eu realizasse qualquer tarefa doméstica que meu irmão não tivesse que realizar também. Os primeiros passos ao que hoje conheço como co-educação e co-responsabilidade. Foi ela quem insistiu que eu não fizesse a primeira comunhão, para que eu logo pudesse encontrar o meu próprio caminho espiritual. E foi ela quem, ainda sendo muito cristã, deu todo o apoio e sentia muita curiosidade quanto a minha iniciação ao neo-paganismo.

Essa mulher, minha Mãe, foi quem começou a galgar um caminho à minha atual consciência feminista. Hoje, recordo dois dados da minha adolescência que considero de suma importância, ainda que, para muita gente, parecerão levianos. Recordo que, quando os pêlos das minhas pernas e meus pêlos púbicos começaram a ser mais notórios, minha Mãe insistia que eu não me depilasse. Era difícil lutar contra a etapa do descobrimento e das rodas de amigas vangloriando-se das suas respectivas depilações. Sentiam-se “mulheres”. Não dava ouvidos a ela e me depilava. Apesar de que ela seguia dizendo que eu não necessitava, mas nunca repreendendo.

Recordo também que ela, desde que meus seios começaram a crescer e até hoje, sugeria constantemente que eu saisse de casa sem sutiã. Que eu não precisava dele. Diversas vezes eu colocava um vestido ou alguma camiseta de tiras e tinha vergonha de sair sem sutiã. Ela dizia que ficava lindo e que eu não tinha por quê sentir vergonha dos meus seios. Demorei anos para entender o que ela queria dizer com aquilo. E mais ainda demorei para ser capaz de assumir o meu corpo e sair de casa sem o sutiã e sem a preocupação de se as pessoas iriam notar o meu bico do peito ou não, ou se aparentariam demasiado caídos. Para ser exata, há menos de um ano (hoje tenho 27 anos), comecei a sair assim, com os seios livres e com satisfação.

Há quatro anos entrei no universo dos estudos de gênero e feministas, engordando a fundamentação teórica para tantas das coisas que eu já sentia antes e começando a minha militância. E sou cada vez mais consciente da tremenda relevância que a educação dada pela minha mãe tem em tudo isso. Considero essenciais os dois fatos mencionados, porque aprendi que fazer política começa desde os nossos territórios mais íntimos, desde os nossos corpos. Meu corpo é meu maior instrumento e é com ele e nele que sinto e rebato todas as cadeias invisíveis desse sistema heteropatriarcal. A depilação, o sutiã… são dessas normas que, de tão arraigadas, passam despercebidas ante nossos olhos. E não digo que deixemos de fazer depilação ou de usar sutiã. Não. Refiro-me à necessidade de questionar-nos, ser conscientes do quê e do por quê fazemos algo. E isso, posso fazer hoje, porque essa mulher, minha Mãe, Maria Lúcia de Araújo, disse-me, há uns quinze anos atrás, que eu podia fazer isso.

Hoje, 22 de setembro de 2012, é o aniversário dela. Não cumpre 50, nem nenhuma dessas idades comumente festejadas. Cumpre 49. Cada vez a respeito mais (se é possível). Mas não esse respeito com a imposição da idade e dos vínculos maternais. Não. É um respeito pelo que ela realmente é. Porque, sei que é um clichê, mas ela é uma Grande Mulher. E, de não estar fisicamente ao seu lado hoje, não encontrei melhor maneira para fazer-lhe uma homenagem que esta. Dizendo-lhe algo que já queria dizer-lhe faz algum tempo: Mãe, você foi a primeira feminista que conheci. E, de uma mãe como essa, não posso estar mais orgulhosa.

Amo você. Feliz ano novo.